Resumo: Este material destina-se a discutir as origens do futebol no Brasil, com foco particular no Rio de Janeiro. Tem como base o livro “Footballmania”, escrito pelo historiador Leonardo Affonso de Miranda. Trata-se de um excelente recurso para explorar a História Social, demonstrando como as dinâmicas de classes se manifestam não somente nos ambientes de trabalho, mas também em espaços de confraternização e cultura…
Habilidades: EF09HI01, EF09HI03, EF09HI04, EF09HI05
O início do futebol no Rio: um esporte para "gente diferenciada"
Embora sejamos o “país do futebol”, o registro mais antigo sobre uma partida de futebol ocorreu na Inglaterra em 1848. Após essa primeira partida, não demorou para que o esporte se popularizasse rapidamente e novas equipes de diferentes escolas inglesas se formassem. levando à formação de novas equipes de diferentes escolas inglesas. Pouco tempo depois, essas equipes se reuniram em Cambridge para estabelecer as primeiras normas do que viria a ser o futebol, lançando as bases do esporte que se tornaria o mais popular do planeta.
É claro que o futebol ainda era muito diferente: Naquela época, por exemplo, os gols não contavam com o travessão, mas sim com apenas duas longas traves sem limite de altura. O tiro de meta, como conhecemos hoje, também não existia. Antes, a bola que saísse pela linha de fundo era concedida à equipe que a recuperasse primeiro, resultando em uma cobrança de falta. VAR então? Nem pensar. De qualquer modo, aos poucos, as regras foram se aprimorando e o esporte bretão passou a se assemelhar mais com o que conhecemos hoje.
No Brasil, o futebol chegou por volta da década de 1890, trazido como uma curiosa diversão por jovens abastados que adquiriram esse hábito durante seus estudos na Inglaterra, França ou Suíça.
Em seus primeiros anos em território brasileiro, o futebol se tornou uma verdadeira febre entre as camadas mais ricas da sociedade. Em pouco tempo, os jornais noticiavam que as “matchs” (partidas) estavam “repletas da nossa melhor sociedade”. A prática desse esporte demandava vestimentas específicas e caras, e o vocabulário associado ao futebol estava repleto de termos estrangeiros, evidenciando uma prática esportiva bastante elitizada.
No entanto, à medida que o futebol ganhava popularidade nos bairros mais abastados da então capital do Brasil, diversos clubes surgiram na Zona Sul do Rio de Janeiro: Fluminense F.C., Botafogo F.C., Rio Cricket F.A., Riachuelo F.C. e América F.C. Estes clubes eram compostos unicamente por estudantes abastados e trabalhadores especializados. Devido à sua exclusividade social, essas agremiações cobravam mensalidades extremamente elevadas e estabeleciam regras particulares que proibiam a adesão de trabalhadores braçais. Em outras palavras, aqueles que não pertenciam à alta sociedade carioca eram excluídos das partidas, como atestava o estatuto do Botafogo F.C.:
Estatuto do Botafogo F.C. em 1905: É requisito para participar do clube “não ser nem ter sido profissional de qualquer serviço braçal”, sendo necessária uma explicação sobre “o lugar que ocupa no emprego”.
Portanto, nessa época, o futebol ostentava a marca de refinamento, sendo utilizado como meio de consolidar distinções sociais em um país profundamente desigual e que havia recentemente abolido a escravidão. Aquele que se dedicava a esse esporte e frequentava os estádios eram vistos como “chic e refinado”, um privilégio para poucos. Numa comparação com nossos tempos atuais, seria como ter o privilégio de andar de iate ou praticar Lacrosse. E a determinação das elites em manter o futebol como uma prática que reforçava sua condição privilegiada resultou em uma exclusão significativa dos populares, seja por meio dos regulamentos dos clubes, seja por meio das mensalidades caras cobradas para participar do futebol.
Entretanto, no meio da “juventude fina e elegante” que comparecia aos clubes da Zona Sul, espremidos em telhados e muros da vizinhança, começam a comparecer alguns “incômodos” espectadores, segundo os jornais da época, como vemos nessa foto:
Os “incômodos” espectadores eram, na verdade, trabalhadores, crianças e pessoas comuns que conviviam na cidade e demonstravam interesse pela novidade intrigante. vinda da Europa. Eles apreciavam as competições esportivas e tentavam acompanhar os jogos, mesmo diante da desaprovação por parte dos membros associados dos clubes.
Além de acompanhar os clubes da Zona Sul, os trabalhadores também passaram a formar seus próprios times nos bairros operários. Assim, em áreas mais afastadas e menos abastadas da cidade, começaram a surgir clubes de futebol compostos exclusivamente por trabalhadores, como foi o caso do Bangu, do Andaraí e do São Cristóvão. Todos esses clubes não impunham restrições com base na renda ou na cor da pele, mas eram frequentemente alvo de acusações por parte da imprensa, que os rotulava como tendo “maus costumes” ou associava “indecência” aos seus jogadores.
Com essa popularização, o futebol, que começou exclusivamente associado ao “chic” e à fidalguia, gradualmente se via “ameaçado”: os estratos mais humildes da sociedade carioca lutavam para construir sua própria relação e espaço com o esporte. No entanto, esses novos fãs e esportistas eram reincidentemente mal recebidos nos estádios, sendo rotulados como “indelicados” ou “indignos” de presenciar o evento.
Uma reação por parte dos esportistas mais abastados foi estabelecer de maneira explícita a exclusão dos trabalhadores de seus jogos. Assim, a Liga Metropolitana de Futebol – a entidade responsável por organizar os campeonatos de futebol no Rio de Janeiro – decidiu, em 1907, incluir uma nova regra em seu regulamento:
“Comunico-vos que a diretoria da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade de votos que não serão registrados como jogadores nesta liga as pessoas de cor”
Essa medida foi amplamente elogiada pelas elites da época, que estavam imersas em teorias absurdamente racistas que enalteciam as “diferenças inatas” entre as supostas “raças humanas”.
Para agravar ainda mais a situação, além do aspecto racista, as críticas direcionadas aos clubes operários também se opunham à mistura de pessoas pobres e ricas nos campos de futebol. Vejamos a opinião expressa pelo secretário geral da Liga de Futebol. Segundo ele, era necessário “selecionar os elementos que jogam foot-ball“, pois “foot-ball é um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo”. Na visão dele, isso evitaria um “desagradável contato” entre os jovens endinheirados e os trabalhadores que praticavam o esporte naquele período. Essa declaração foi registrada em uma revista da época:
“Nós frequentamos uma Academia, temos uma posição na sociedade, fazemos a barba no salão naval, jantamos na rotisserie, frequentamos conferências literárias (…), mas quando nos resolvemos praticar sport (…) somos obrigados a jogar com um operário, limador, com um mecânico, chauffeur e profissões outras que absolutamente não estão em relação ao meio onde vivemos. Nesse caso a prática do sport torna-se um suplício, um sacrifício, mas nunca uma diversão”.
Não que o mal-humorado autor fosse opositor à prática do “sport” pelas camadas sociais mais baixas. Seu problema estava relacionado à convivência, ao efeito de aproximação entre as classes. Seria uma situação que resultaria na presença de indivíduos considerados “completamente diferentes” pela sociedade carioca preconceituosa.
Resumidamente, em uma época em que o racismo e o preconceito de classes eram considerados “verdades científicas”, o futebol também servia como um terreno de disseminação dessas ideias. Os campeonatos frequentados pela elite excluíam abertamente pessoas negras e trabalhadoras, enquanto buscavam manter uma imagem de “sofisticação” para aqueles que praticavam o esporte.
É claro que hoje o futebol mudou bastante, tornando-se um esporte praticado por pessoas de todas as classes sociais. No entanto, será que em nossa sociedade ainda existem espaços de convívio supostamente públicos, mas que sempre são alvo de “polêmicas” quando frequentados por pessoas mais pobres? E mesmo no futebol, todas as pessoas são igualmente bem-vindas para uma partida? Ou ele continua reproduzindo certos preconceitos e violências da sociedade?
São perguntas importantes e que não devemos negligenciar, afinal, não desejamos reproduzir uma violência semelhante àquela que encontramos neste texto, não é mesmo?