Resumo: Este material traz trechos do diário de uma criança alemã chamada Piete Kuhr, escrito no contexto da Primeira Guerra Mundial. Além do diário, há também uma sugestão de atividade (recomendo fortemente!) e também alguns exercícios básicos para serem feitos após a leitura. O documento apresenta as impressões de uma criança sobre os eventos militares em curso na Europa, numa escrita direta e envolvente. Trata-se de um texto muito bonito, que também serve como ponto de partida para elaboração de reflexões mais críticas sobre os perigos do nacionalismo, dos discursos militaristas e de lideranças políticas com discursos inflamados sobre a geopolítica internacional. Também é possível revisitar os conceitos básicos tratados em aula sobre a Primeira Guerra Mundial, além de humanizar a aula sobre o tema com uma pincelada de memórias pessoais.
Documento 1: Trechos do diário de Piete, extraído do livro “Vozes Roubadas”
1914
Meu nome é Piete.
Não direi qual é meu verdadeiro nome, pois é muito estúpido.
Vou dizê-lo, sim; é Elfriede, Frieda (Frieda é o limite do ridículo!). Meu irmão se chama Willi-Gunther, ele tem quinze anos. Eu tenho doze. Moramos com minha avó em Schneidemühl. Minha mãe tem uma escola de música em Berlim, a “Principal Escola de Música e Dramaturgia”. Ela nos visita com freqüência. Estes são os melhores momentos.
Hoje é dia 1º de agosto de 1914. Faz muito calor. Começaram a colher o centeio no dia 25 de julho, já está quase branco. Quando passei por um campo esta noite, colhi três ramos e fixei-os sobre minha cama com uma tachinha.
A partir de hoje a Alemanha está em guerra. Minha mãe me aconselhou a escrever um diário sobre a guerra; ela acha que ele poderá me interessar quando eu for mais velha. É verdade. Quanto eu tiver cinqüenta ou sessenta anos, aquilo que tiver escrito quando criança deverá parecer estranho. Mas será verdadeiro, pois não se deve contar mentiras num diário. Foram os sérvios que começaram. No dia 28 de junho, eles receberam o príncipe herdeiro Francisco Ferdinando e sua esposa, Sophie. O casal real estava passeando de carro pela cidade de Sarajevo, e enquanto o carro passava houve uma emboscada e tiros foram disparados. Ninguém sabe quem foi o autor. O jornal diz que toda a Áustria-Hungria está num alvoroço indescritível. Em Viena [capital da Áustria], um ultimato foi redigido e enviado à Sérvia, mas os sérvios o rejeitaram. Todos dizem que os sérvios desejam a guerra para poderem manter seu estado de independência e que a Rússia irá apoiá-los. Certa vez eu conheci um estudante russo em Kolberg, Nikolai Kedrin; meu irmão, Willi-Gunther, era muito amigo dele. E agora também ele estará envolvido nos tiroteios. Perguntei a Willi-Gunther se ele era capaz de imaginar tal coisa. Willi pensou um pouco e disse que não.
Áustria-Hungria, Alemanha, Sérvia, Rússia e França mobilizaram seus exércitos. Não fazemos idéia de como será a guerra. Há bandeiras em todas as casas da cidade, como se estivéssemos na época de algum festival. São todas pretas, brancas e vermelhas.
2 de agosto de 1914
(…) Inúmeras pessoas estavam na igreja, sentadas e de pé. O ar estava quente e abafado. O pastor pregou um sermão muito ardente, falando da exaltação alemã e da luta por justiça. Fiquei muito frustrada porque tenho apenas doze anos e não sou um homem. De que serve ser uma criança quando há uma guerra? Uma criança não tem utilidade nenhuma em tempos de guerra. Temos que ser soldados. A maioria dos homens alista-se de livre e espontânea vontade.
Todos cantamos “Nosso Deus é uma poderosa fortaleza”. Vovó cantou com sua voz fina, que às vezes treme um pouco. Eu gosto muito da vovó. O pastor fez sua prece ao Senhor e concluiu pedindo a Deus “que traga a vitória às nossas tropas”. “Já passei por isso duas vezes antes”, disse a vovó durante o caminho de volta. “Foi a mesma coisa quando eclodiu a guerra da Dinamarca, e novamente em 1870. Por que as pessoas não conseguem viver em paz?!”
2 de outubro de 1914
Um dia frio e horrível. As folhas nas árvores já estão amarelas e vermelhas e, em alguns pontos, estão caindo. (…) Os soldados na estação de trem disseram que a água da chuva nas trincheiras chega a ter até meio metro de profundidade. Com a umidade a penetrar-lhes a pele, os soldados flutuam na água enquanto disparam. O mofo penetra direto nas roupas. Há muitos problemas de bexiga e rins entre os soldados.
11 de março de 1915
Outra arrecadação foi anunciada na escola. Desta vez estão pedindo novamente por cobre, além de latão, chumbo, zinco, bronze e ferro velho. A partir desses materiais serão feitos canos de armas, canhões, cartuchos de munição, e assim por diante. A competição entre as classes está acirrada. Nossa classe, a quarta, reuniu até agora a maior quantidade. Eu virei a casa de cabeça para baixo. Nossa Marie nem reclama muito! “A senhorita Piete está nos roubando tudo!”. Levei colheres antigas, facas, garfos, potes, chaleiras, uma bandeja, uma tigela de cobre, dois abajures de bronze, antigas fivelas de cinto e nem sei mais o quê. Vovó bateu palmas e resmungou: “A menina vai me levar à falência! Entregue antes os seus soldadinhos de chumbo do que meus últimos pertences!”.
Então meu pequeno exército, com o qual eu e Willi tanto brincávamos, acabou encontrando sua morte. Para evitar o sacrifício de todos os soldados, eu sorteei cotas entre os candidatos à morte. Os escolhidos para preencher a cota foram selecionados entre as quatro colunas e postos de lado. Quanto o sorteio acabou, pus os azarados aos pares dentro de uma grande colher de metal e mantive-a sobre a chama do gás. Os heróis nos seus belos uniformes azuis derreteram até a morte pela pátria, o chumbo tornou-se prateado, pesado e fluido.
“Rápido, na água gelada!”, exclamou Willi. Deixei a massa chiar numa bacia de água fria, enquanto cantava. “Os outros também”, pediu Willi com crueldade. “Não há sentido em guardá-los.”
Foi horrível! Derreti-os até o último soldadinho. Poderia facilmente ter chorado. Mas, ao invés disso, gargalhei com meu irmão.
29 de julho de 1915
Os zepelins sobrevoam nossa cidade quase todos os dias; Parecem gigantescos charutos prateados. Agora estou tão acostumada a vê-los que nem olho mais para cima. O Zepp 35 costuma aparecer. Os Zepelins estão frequentemente envolvidos em missões de bombardeio sobre a Inglaterra e Paris; causam enorme destruição. (…)
1º de Setembro de 1916
Já chega deste diário de guerra! Não posso mais suportar. A Guerra não tem fim. Não posso continuar escrevendo até o cabelo ficar grisalho. No último dia 27 de agosto, a Romênia declarou guerra à Áustria-Hungria. Apenas um dia depois nós declaramos de nossa parte guerra contra a Romênia. Então, em 29 de agosto, nossa aliada Turquia fez o mesmo, declarando guerra à Romênia, e hoje chegou a declaração de guerra da Bulgária contra a Rússia.
Antigamente, quando éramos algo parecido com uma “grande família”, havia uma bandeja de prata na nossa sala de visitas na qual os visitantes deixavam seus cartões. É esta a sensação que eu tenho em relação a essas intermináveis declarações de guerra – todos declarando guerra contra todos os outros. A única coisa faltando são as reverências e as trocas de beijos nas mãos. “Permita-me – por favor – minha declaração de guerra! – “Muito grato! Permita-me – eis a minha!”…
16 de Março de 1917
A Rússia não tem mais uma família real. No dia 2 de março o czar Nicolau “entregou o trono”, como diz no jornal. Um governo provisório, como dizem, foi formado.
Ainda nem tenho quinze anos. Como posso saber se a família real deveria ser fuzilada ou não? De acordo com Jesus, decididamente não se deve fuzilá-los. “Não matarás!” Decididamente!
4 de Novembro de 1918
Logo terminarei meu diário de guerra. Será o último diário de guerra que escreverei na vida, pois jamais pode haver outra guerra, jamais. Se ao menos os termos do armistício pudessem ser logo ratificados, pois os combates continuam acontecendo periodicamente. No Front sul os italianos chegaram a tomar Trieste e estão até avançando rumo a Innsbruck. Eles nem mesmo encontram mais resistência. Diz-se que o exército austro-húngaro está completamente desorganizado. Os húngaros em especial não desejam mais combater, e em vez disso preferem voltar às suas mulheres e crianças e reconstruir seu país. Não querem mais saber do imperador Carlos…
Amanhã levaremos uma [guirlanda] ao cemitério dos prisioneiros, pois é meu dia de folga. Gretel perguntou se não seria melhor levá-la ao nosso cemitério de heróis. Mas eu disse: “Não – os outros não têm quem lhes leve uma grinalda”.
Trechos extraídos da obra “Vozes Roubadas – Diários de Guerra”, publicado em 2008.